segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Escrevo



Escrevo já com a noite
em casa. Escrevo
sobre a manhã em que escutava
o rumor da cal ou do lume,
e eras tu somente
a dizer o meu nome.
Escrevo para levar à boca
o sabor da primeira
boca que beijei a tremer.
Escrevo para subir
às fontes.
E voltar a nascer.
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(in Os Sulcos da Sede, Eugénio de Andrade)
 
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Serenade No.3 in D major KV 203, Mozart (Munich Symphony Orchestra)
 
 
 
 
 



sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

Exercício físico


Sair daqui, Donaminha? Mas porquê?
Estou aqui tão aconchegadinho...
Precisas do saco para ires ao ginásio!
Então vou fazer-te uma proposta:



Vais começar a fazer exercício físico comigo todos os dias:
trepar às árvores, correr atrás dos pássaros
e correr à frente dos cães.
Não vais precisar de ir ao ginásio,
e eu fico com o saco para me aconchegar.
Está combinado?

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My funny Valentine, Gerry Mulligan with Chet Baker

domingo, 12 de janeiro de 2014

A estratégia da aranha


A rendeira é minha conhecida de há tempos:
 gorda, escura, deselegante, antipática.
Não gosto dela, mas começo a desconfiar que ela gosta de mim...
Que outra razão poderia haver para que estas rendas - equilíbrio precário de luz e seda, exibição inverosímil de perícia e sabedoria -
me sejam deixadas à porta todas as manhãs,
senão a de serem um discreto pedido de amizade?
Acho que vou deixar enre(n)dar-me!
 
 
(PpP)
 
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Sweet and lovely, Thelonious Monk/John Coltrane at Carnegie Hall
 
 

domingo, 5 de janeiro de 2014

Espera

 
 

Hiberno. Espero os dias que não anoiteçam.
Afogo-me. Espero o sol que aqueça as árvores.
Tirito. Espero o calor que fecunde a terra.
Entristeço. Espero o sorriso dos botões de rosa.
Espero. Ainda quase mais três meses...

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Nocturno para piano nº21, F.Chopin (Maria João Pires)